BoF Voices: Moda e prazer para o cérebro

Ao abrires este e-mail talvez te perguntes o que te trago esta semana. Pois bem, entre o final de uma semana e o início de outra, tenho para ti mais de 11 horas de BoF Voices 2024 em cerca de 10 minutos de leitura. (Ainda é preciso dizer que não é um resumo, mas um artigo com a perspectiva The Fashion Standup?)
Leio o The Business of Fashion há, sem exagero, mais de uma década. Ainda me lembro da alegria rejubilante com que recebi em casa a revista BoF que tinha como figura de capa Anna Wintour; da dedicação que tive com cada curso digital, principalmente o de História de Moda; e para mim o mais fixe de ter um endereço de e-mail da faculdade foi poder ser membro estudante do BoF.
Mais tarde, ouvi de uma das pessoas que mais admiro o seguinte conselho: “ler o BoF todos os dias” e fiz o possível e o impossível para cumprir religiosamente. Afinal, sempre admirei aquilo que Imran Amed construira a partir do seu sofá em Londres e, pensando bem, é um pouco óbvio porque existe o ‘The’ em ‘The Fashion Standup’.
Introduções feitas, vamos ao “O quê?”, “Onde?”, “Como?”, “Quando?” E “Quem?”. A edição de 2024 do BoF Voices decorreu em Oxfordshire, no Reino Unido, entre os dias 12 e 14 de Novembro. Tendo alguma assistência presencial e outros membros da comunidade BoF puderam assistir ao livestream ou à gravação dos mesmo, eu iterei entre estas duas últimas alternativas.
Para além de decorrerem em três dias, estas conferências dividiram-se em cinco sessões distintas: “The Wider World”, “The Fashion System”, “Technology and Innovation”, “Global Culture and Creativity”, “Live your best life”.
Não queremos que o primeiro terço deste artigo seja uma seca, portanto vou-vos localizando nas sessões, secções e oradores à medida que vamos avançando para informações mais completas ,podes clicar aqui. Teria vários títulos para dar a este artigo, estes servirão de subtítulos e de estrutura.
A guerra no coração do atelier
Esta expressão mistura dois grandes temas explorados no Voices, a realidade negativa em que vivemos: de guerras e polarização de opiniões, de medo e de descontentamento em várias formas. Mas está presente a criatividade, aquilo que é quase onírico. Esta personificação ao espaço de criação do atelier dotando-o de um coração foi feita por Alessandro Michele referindo-se ao atelier da Valentino, mas lá chegaremos.
A Moda é reflexo do Zeitgeist actual. E o que se passa agora, agora neste momento? Temos uma guerra na Europa, outra no Médio Oriente e uma cobertura mediática e imediata brutal de ambas ; e ainda não vai estar uma mulher no cargo mais importante do mundo, a presidência dos EUA, mas sim Donald Trump.

Não tenho energia para tornar a minha newsletter um campo de batalha de opiniões, portanto no que toca a estas questões vou manter-me factual e breve.
Sven Smith decretou que estamos numa nova Era, e não só devido à Taylor Swift. Alguém podia pegar na Eras Tour e na Barbiecore e, com esses dois ingredientes, fazer um reset ao mundo? Obrigada! Durante a apresentação de “We are in a new Era!” foi-nos dada uma alternativa, - olharmos para o telescópio para vermos as estrelas e um futuro mais brilhante, invés de nos concentrarmos no microscópio que irá ampliar os problemas. Uma vez que a esperança no futuro é a única forma de nos garantirmos como espécie, devolvendo às novas gerações o desejo da parentalidade.
Do presidente eleito dos EUA falou-se em duas ocasiões distintas, ambas no decorrer da primeira sessão. Primeiro, com Ravi Agrawal a ajudar-nos a perceber o que tal regresso à Casa Branca significará para o mundo, que basicamente, na minha interpretação, poderá significar tudo e simultaneamente o seu contrário. Mais tarde, foi a vez de Tina Brown mencionar a Imran Amed a sua perspectiva sobre uma das personalidades mais influentes do imobiliário nova-iorquino da década de 90, que se tornaria a cada dia mais sombria.
Mas não foi o tema principal da participação da grande impulsionadora da Vanity Fair e do New Yorker - mas falar dos novos heróis, os jornalistas independentes - aqueles que acima de tudo querem investigar e reportar a verdade, num mundo cada vez mais dominado por assustadores gigantes. Tina Brown foi, no contexto destas conferências, a autora da expressão que deu origem ao título deste artigo.
E um mundo sob domínio de alguns é um mundo em guerra, estamos em guerra. A polarização de opinião daquilo que acontece no Médio Oriente aparenta não ter precedentes. Jameel Jaffer e Daniel Levy fizeram um apelo ao diálogo empático, compreensivo e verdadeiro. O entendimento e o ouvir para entender a perspectiva do outro e não só para responder e rotular, configuram o único começo de uma sociedade mais pacífica.
Esta liberdade de expressão é também a única forma de a Moda resolver um dos seus maiores problemas - a falta de condições laborais dos garment workers. O que acontece quando está demasiado calor para produzir Moda? Foi esse o problema que Sarah Kent tentou desmistificar com Beto Bina, Abiramy Sivalogananthan e Laurie Parsons. Sendo a grande conclusão é que só se poderão reverter estas condições desumanas quando os direitos de união forem consagrados, nos locais que fabricam a roupa e que todos tão bem conhecemos, para que através da união cada pessoa possa ter consciência dos seus direitos e poder para os exigir.

Quando pensamos em Criatividade em diálogo com Negócio no seio da Moda, não temos de pensar em guerra, por vezes, é tudo só coração. O novo director criativo e o CEO da Valentino são prova disso. Alessandro Michele e Jacopo Venturini mostraram que o que faz o sucesso, pode muito bem ser, a emoção da amizade, da empatia e da liberdade e, não gráficos e números.
A máquina fotográfica em cima da cama
Quando Giles Diley decidiu desistir da fotografia de Moda, a meio do trabalho num editorial num luxuoso hotel, imaginou como seria se mandasse a sua máquina pela janela da suite, mas equacionando o estrago que isto poderia provocar na vida de outros, apenas a lançou para cima da cama. A máquina fotográfica em cima da cama passou a ser o novo “murro na mesa”. Assim, subordinados a este tema abordaremos outras mudanças, activismos e revoluções.
E o mínimo que se pode dizer é que a revolução se mostrou de várias formas no palco do BoF Voices. Desde as mudanças de narrativa ou uma abordagem mais consciente aos focos e aos erros europeus e norte-americanos a um impacto mais localizado.
Fred Swaniker apela que se vire a página da estória que se conta sobre África e para que se veja o talento e o potencial de recursos humanos que muito beneficiará uma Europa cada vez mais envelhecida.
Ravi Thakran desmistifica a India como o novo grande mercado em crescimento, mas que não pretende ser ocidentalizado. Uma vez, que como nos explica Utkarsh Saxena foi a sua colonização que criminalizou o amor queer, que sempre esteve presente na sua cultura ancestral sem preconceitos.
Es Devlin e Ekow Eshun desafiaram-nos a repensar a ideia de casa e de lar, face àqueles que nos parecem semelhantes ou diferentes. Depois de todos termos aprendido a aproveitar a casa de maneira diferente, porque fomos obrigados a fazê-lo, passamos de vestir o luxo para levá-lo a passear para desfrutarmos dele em casa e, assim, o design torna-se o novo Luxo. Por entre zeitgeist Benjamin Paulin redescobre o trabalho do seu pai em Paulin Paulin Paulin. Daniel Ervér, o novo CEO da H&M quer reabilitar a casa onde cresceu profissionalmente focando-se não só na criatividade, mas trazendo de volta as colaborações com designers e investindo na qualidade e na experiência em loja.
Há quem nunca tenha tido dúvidas da importância da sua casa e que ao lutar para que seja saudável está a lutar pela humanidade, falo de Nemonte Nenquimo e do seu empenho pela preservação da Amazonia. Clover Hogan não o sentiu tão na pele, mas isso não a impediu de se dedicar ao activismo climático, ao ponto de aos 25 anos já ter aconselhando líderes mundiais em como a questão climática é, na verdade, uma crise cultural.
Uma cultura de consumo para a qual Lawrence Lenihan propõe uma revolução na cadeia produtiva da indústria, assente na inteligência artificial que permite uma produção de Moda on demand, sem desperdício, portanto mais sustentável.

Falta-nos abordar ainda outra dimensão de casa, a do corpo - corpo que apresenta novos desafios e circunstâncias como aconteceu com Diley, mas que não foi impedimento para trabalhar no sentido de ajudar a melhor as circunstâncias de quem fora mais afectado por diferentes guerras.
Esse corpo físico que pode ter uma terapia na música como argumenta e demonstra Rosey Chan ou que pode esconder o nosso “eu” mais verdadeiro como defende Mory Fontanez.
O (quase) conto de fadas dos creators
Este foi o meu primeiro pensamento ao ouvir a estória de amor de Nara Aziza Smith e Lucky que Smith. Aqui terão lugar para além do que destaco da conversa de Nara e Lucky com Imran Amed, assim como todos os outros projectos que não estejam só relacionados, de alguma forma, com universo da creator’s economy mas também com o digital na sua amplitude.
Foram vários os temas que subiram a palco. O sucesso do e-commerce da Moda de Luxo, está na cultura de marca e em perceber de retalho, mas acima de tudo compreender a Moda. Uma solução de AI que nos ajuda a escolher que peça comprar, melhorando de compra de Moda em digital tornando-a única. A AI também poderá dentro de pouco tempo permitir a cada pessoa criar conteúdo digno de Hollywood, é o que defende Tom Graham que graças a esta tecnologia rejuvenesceu Tom Hanks para um filme que estreará em breve.
O co-fundador da On e o Co - fundador da Skims concluíram que um produto de qualidade associado a uma forte cultura de marca é o antídoto à efemeridade dos algoritmos.
Josephine Philips encontrou por meio das estórias do seu próprio guarda-roupa e na sagacidade acidental o caminho para modernizar o processo de reparação de peças repletas de memórias e de amor. Com Sojo as marcas trazem ao consumidor valor acrescentado e um maior sentido de comunidade, sem complexos de que a oferta de serviço de reparação seja sinónimo de menos qualidade.

Regressando à conversa intitulada de “Living authentically in viral moments”, uma reflexão de Imran Amed sobre o trabalho de Nara Aziza Smith tocou-me, particularmente. Amed argumenta que ainda que Aziza Smith dedique cerca de 9 horas diárias à criação de conteúdo, esta actividade não é consensualmente interpretada como trabalho, sendo consumido num ecrã tão pequeno como o é o de um smartphone. Mas, para Imran, se o meio de consumo do mesmo conteúdo fosse o grande ecrã, ninguém duvidaria do seu valor e do trabalho árduo envolvido.
Oh my baby !
Oh my baby! Esta foi a expressão que tive a sensação de ouvir quando no final da conversa com Bianca Sanders, Bethann Hardison abraça o fundador The Business of Fashion. Oh my baby! é subtítulo e está aqui porque por muito autoconfiantes e independentes que sejamos, existem momentos que só precisamos de ouvir uma pequena alcunha especial dita por quem admiramos para seguirmos em frente. Sim, aqui está experiência própria a escrever por mim. E, sim, este último capítulo trata da singularidade de Bethann Hardison, do percurso da auto - descoberta pela auto-expressão até à auto-confiança e da independência na Moda.
A modelo e activista Bethann Hardisom continua imparável aos seus 82 anos, depois ter dado um vasto contributo para uma indústria de Moda mais inclusiva e representativa, redefine os preconceitos da sociedade face à idade e ao idadismo. Deixando claro, durante a sua conversa com a designer de menswear, que nem todos estamos destinados a empreender grandes papéis de activismo, desde que cada um de nós contribua, em diferentes medidas, para uma mudança social positiva.
Karl Sanchez usou a arte da transformação criando a drag queen Nicky Doll para através da feminilidade usufruir e vivenciar plenamente a sua masculinidade. Já Salman Toor usou a pintura com enorme espontaneidade e muito verde para se descobrir e expressar para lá da cultura onde fora educado.
De “How Independent Brands can thrive in a Fashion World by Giants”, uma conversa moderada por Olya Kuryshchuk com Bohan Qiu, Brandon Wen e Roksanda Ilincic, conclui-se que o sucesso das marcas independentes assenta numa maior curadoria de apoios dado aos designers, mas acima de tudo uma mudança de mindset. Uma vez que a Moda precisa de inúmeros profissionais para existir, não podem existir só designers independentes para que exista Moda independente. É preciso mudar o mindset de que os designers são os players de maior impacto, ao tratar-se de uma indústria colectiva a educação em design de Moda não tem de implicar formar um designer de Moda, deve formar um criativo apto a actuar na área da Moda.

Simon Portes Jacquemus e a Jacquemus são, talvez, o exemplo mais mediático de uma marca de Moda independente. Ainda que tenha começado a sua marca com poucos recursos monetários, Simon alicerça o seu sucesso em três pilares fundamentais. O seu envolvimento total na marca que fundou como CEO e director criativo, funções que se desdobram em inúmeros outros papéis e funções. O humor como estética e forma de comunicação descomplicada que, através da diversão, torna a compreensão da Moda acessível a todas as gerações e backgrounds. E, por fim, a mais apostar todo o esforço e empenho na visibilidade e na criação de uma comunidade forte para lá da marca.
Sei que corro o risco de me tornar repetitiva, mas fashion thinking é um processo contínuo, ininterrupto e necessário para a continuidade da Moda como sistema. Portanto, não é legítimo tirarmos conclusões que evoluirá, pensar a Moda é um exercício, é um trabalho.
Tirar conclusões sobre essa mesma actividade poderá chegar a ser snob. E como diz Simon Portes de Jacquemus, quando se é independente não se tem tempo para ser snob.