O papel da Associação ModaLisboa no Sistema de Moda Português - Parte I

O papel da Associação ModaLisboa no Sistema de Moda Português - Parte I
Imagem no âmbito da plataforma Workstation da ModaLisboa Love. Foto: Vasco Neves (2011). Detalhe de ambientes da ModaLisboa Core. Fonte: autora (2023).

No início da pré-adolescência, a aceitação da individualidade com uma deficiência física, e numa sociedade padronizada e enviesada, a atmosfera da ModaLisboa a cada seis meses, permitiu não só a aceitação da diferença como a celebração da mesma. Assim como possibilitou o aumento de um porto seguro fora do núcleo familiar, permitindo novas relações neurológicas que abriram a porta a novos paradigmas de independência e realização pessoal experienciados pela própria investigadora como portadora de paralisia cerebral.

Ao abordar qualquer temática importa caracteriza-la primeiro, como ponto de partida recorremos às palavras de Raquel Matos Résio o (2020, p. ii):

“A Associação ModaLisboa surge em 1993, com o intuito de organizar a primeira semana de moda independente da Europa. A Lisboa Fashion Week é o principal projeto da Associação ModaLisboa e tornou-se no evento de moda com maior reconhecimento em Portugal. Apresenta sazonalmente, em março e outubro, as coleções de estilistas nacionais, com a missão de divulgar o melhor da Moda Portuguesa para o mundo”.

Ainda que, a denominação mais correta fosse designers de moda invés de “estilistas”, visto que a Moda como disciplina comtempla os princípios de procura de soluções a hipotéticos problemas – génese do design, a autora (Matos Résio, 2020, p.16)  dá-nos mais informações relevantes, prosseguindo:

“A ModaLisboa é um evento dirigido a um público profissional constituído por imprensa, compradores, indústria têxtil, assim como convidados dos criadores e representantes de áreas artísticas, culturais, empresariais e institucionais. Em cada edição, conta com cerca de 25 500 visitantes, 1 000 000 de espectadores na TV e online, além de mais de 450 jornalistas.”

Não sendo esquecida a menção aos outros projetos da ModaLisboa para além da Lisboa Fashion Week: ModaLisboa Sustentável, Sangue Novo, Check Point, Fast Talks, Wonder Room, Workstation  e United Fashion.

Detalhe de Imagem no âmbito da plataforma Workstation da ModaLisboa Ever.Now . Foto: Arlindo Camacho (2013).

Na mencionada dissertação de mestrado, afirma-se que a Associação ModaLisboa surge em 1993, contudo é imperativo abordar três datas de vital importância para delinear o percurso do objecto de estudo – 1991, 2007 e 2010.

A primeira é a data de nascimento com que o evento Lisboa Fashion Week está registado para a posteridade – não esquecendo a edição piloto nos Jardins do Tabaco, a ModaLisboa 0, ainda não havia sido a marca registada como fonema único numa palavra sem espaços entre estas duas realidades.

Ainda que, esta separação fosse mais tarde forçada e viesse a levar o evento para Cascais, mas tal explicitação fica para mais tarde.

Mas, até esta data, em 2007, foram vários os progressos da ModaLisboa, nestes primeiros quinze anos foram sendo utilizados vários locais da cidade. Trazendo não só a Moda noutra dimensão e escala para terras lusas, como trouxe para Lisboa a arquitectura efémera associada à ModaLisboa, numa cidade fechada aos seus habitantes, como referido por Eduarda Abbondanza  em diversas entrevistas.

Entre tais locais encontram-se: o Armazém Terlis; a Cordoaria Nacional; entre muitos outros. Sendo o local mais emblemático, o Mercado da Ribeira, ocupado pela família ModaLisboa já depois do regresso de Cascais, em Outubro de 2010. Este é um dos marcos que mais orgulha a sua presidente, conseguindo conjugar Moda e “cheiro a peixe”, e celebrando o feito com uma sala de desfiles totalmente branca.

Sala de desfile ModaLisboa In The Market, no Mercado da Ribeira, Outubro 2010. Fonte:modalisboa.pt

Explicitando, finalmente, a questão referente a Cascais, devido a falta de apoio da Câmara Municipal de Lisboa, em 2007, a ModaLisboa, já como Associação e marca registada, muda-se para a Cidadela de Cascais, adquirindo a denominação de ModaLisboa | Estoril.

Contudo, a questão de como se reposicionaria uma instituição lisboeta fora da sua cidade continuava vívida. A resposta a este problema foi materializada mantendo a ligação a Lisboa, através de uma viagem de comboio, havendo assim uma porta de embarque em Lisboa. E sendo a mudança assumida de forma clara e explícita, com o tema Move e com uma campanha ilustrada por malas de viagem.

Outro dos grandes percalços da viagem biográfica da ModaLisboa tem o título de “Who is afraid of Galliano?”, na primeira metade da década de 1990, uma alusão do próprio designer ao facto de muitos designers portugueses se terem mostrado contra a iniciativa da organização do evento de convidarem John Galliano a desfilar na ModaLisboa. Os criadores nacionais pensavam que a presença do icónico e ainda jovem designer, ofuscaria o calendário patente.

Este foi o primeiro intento daquilo que Anabela Becho descreve como diálogo de perspectivas entre designers, nacionais e internacionais, diálogo este que mais tarde se verificaria, ainda que com nomes menos sonantes que Galliano. Este episódio viria a provocar uma paragem na ModaLisboa durante algumas edições.

Ainda assim, quase duas décadas depois, seria a Lisboa Fashion Week a lançar os designers que fariam sucesso na London Fashion Week – a dupla Marques’Almeida.

"Who's afraid of John Galliano?". Fonte imagem 1: modalisboa.pt

Existem várias estórias passíveis de ser contadas sobre a ModaLisboa, mas uma das mais relevantes em termos mediáticos terá sido a própria Fátima Lopes a desfilar com o seu biquíni de diamantes de reduzidas dimensões.

A História da Moda em Portugal continua a ser escrita todos os dias em grande parte graças à ModaLisboa.

Tanto devido à sua estrutura construída em diferentes plataformas de apresentação, que abarcam todos os estádios evolutivos de um designer de Moda:

  • Sangue Novo – para estudantes, finalistas de licenciaturas de Design de Moda das diferentes escolas do país e recém-formados;
  • Workstation – um modelo de “residência artística”, em que designers que ainda precisem de maturar o seu papel no sistema da Moda e equacionar a criação de uma marca própria;
  • LAB – designers com uma marca própria jovem e em evolução, que têm neste laboratório ainda espaço de experimentação;
  • A passerelle principal – para designers já estabelecidos e consagrados.

Como por factores menos tangíveis, como são as emoções – o sentido de comunidade ou a gratidão, mencionadas por vários designers, no documentário que assinala as 50 edições da ModaLisboa, entre os quais Luís Carvalho, Luís Buchinho, José António Tenente e Filipe Faísca.


Ainda que, o propósito deste estudo [ dissertação de mestrado] seja a compreensão, na maior isenção possível, de qual o papel desempenhado pela Associação ModaLisboa no Sistema de Moda Português também importa perceber que a tratar-se de uma organização sem fins lucrativos, esta cumpre uma missão. A missão da promoção (e continuidade, até) da Moda portuguesa.

É um projecto complexo e que exige o solucionar de variadíssimos problemas e ,que só é concretizável por meio de valores muito pouco tangíveis como seja a paixão pelo trabalho que se desenvolve.

Ou, como bem traduz uma expressão de sabedoria popular da Língua Portuguesa, por “amor à camisola”. A amplitude desta perspectiva é completada por este testemunho de Eduarda Abbondanza (in Pública, Coutinho, 2001), a propósito do 10.º aniversário da iniciativa que co-fundou:

“As pessoas que trabalham na Associação ModaLisboa, conseguiram levar este projecto a cabo, ao longo de dez anos, por vezes sem grandes financiamentos. Fazendo trabalhos gratuitos e voluntários. Pelo grande amor à Moda. Pela defesa do Design e da Moda em Portugal. Sabendo que criando este sistema de criadores há todo um sistema de moda que cresce que faz parte de um país evoluído, que cria oportunidades às pessoas. Porque há 20 anos ou se tinha jeito para a Moda ou se ficava a costurar uns vestidinhos para os amigos ou se ia lá para fora.”

Eduarda Abbondanza na campanha ModaLisboa for Good (Março 2024)

Desta citação será dada continuidade a dois temas distintos: a paixão pela Moda e a questão financeira, mais precisamente de financiamento.

Estando inserido no mesmo contexto da citação o assinalar dos 10 anos de existência da ModaLisboa interessa recuperar o artigo de Paulo Gomes (2001). Profissional que acompanhou os primeiros anos da MLX lado a lado com os ‘pais’ desta, tendo sido parte integrante da Direcção Criativa.

Para a revista Elle, Gomes (“Mentes que brilham”, 2001) afirma que tudo na ModaLisboa se vive com intensidade. Por entre o seu testemunho sobressai o retrato que do início, ou melhor dizendo — quem a este projecto deu início. Eduarda Abbondanza e Mário Matos Ribeiro eram:

“à semelhança de muitos dos seus colegas — jovens designers à procura de um lugar  entre pequenas colecções demasiado experimentalistas e desfiles inovadores produzidos com dois tostões — não viviam propriamente nas condições ideais para reflectirem sobre a nova espiritualidade.”

O supramencionado autor (Gomes, 2001), que também, menciona uma questão visceral, que desde a criação  da ”edição zero” e até hoje, há sido mencionada copiosamente por diversos autores, jornalistas, repórteres. Referimos à excepção, que foi durante décadas, Ana Salazar, entre outros factores, era única designer que no início da década de ’90 materializava sistematização e disciplina nas suas apresentações.

Ainda que tal pudesse faltar, à época, aos Baby Boomers da Moda nacional, o que não faltava era vontade. Vontade de fazer as coisas mexer, de inovar, de provar terem conhecimentos e ideias (Gomes, 2001).

O desejo de colocar Portugal no mapa da Moda internacional era tão avassalador, a tal escala que se torna prova que os Gen Z e a sua enorme vontade de mudar o status quo, não é algo assim tão tremendamente disruptivo. Aqui, neste rectângulo no extremo da Europa, houve uma geração, que na Moda abriu a porta à Geração Z, dando-lhes espaço de crescimento, experimentação e descoberta.

Não obstante, de um sonho ser realizado, ser mostrado e crescer, a realidade não se baseia em utopias.

Cartaz do concurso Sangue Novo com fotografia de João Silveira Ramos (1999), ModaLisboa Embarque Imediato . Fonte: Arquivo ModaLisboa. Imagem de bastidores de momento de avaliação do Concurso Sangue Novo. Foto: Andreia Carvalho (2020).

A organização da ModaLisboa renova-se, reinventa-se, e cresce, sem nunca esquecer o seu core, podendo consistir tais processos em pontos a seu favor. É uma das conclusões que são passíveis de ser retiradas das declarações de Ligia Gonçalves - responsável do Gabinete de Imprensa Internacional da ModaLisboa (Hunter, 2023).

Tais declarações, proferidas no âmbito da edição À la Carte , incidem num ponto sumamente importante - a temporalidade em relação à História. Ou seja, ainda que a Semana de Moda de Lisboa tenha já três décadas de história - quando comparadas com as Big Four, as omnipresentes “capitais de Moda” - é recente.

A tal contemplação e ao relembrar do facto disruptivo que deve ser bem sublinhado e até repetido - de que a ModaLisboa foi a primeira organização a estruturar-se como semana de Moda independente - somam-se as visões de Hunter (2023) e Duveau(2023).

A primeira não hesita em afirmar que a ModaLisboa foi efectivamente pioneira na descentralização do mercado de Moda para cidades capitais, do ponto de vista geográfico, para além daquelas que o próprio sistema de Moda havia já designado e estabelecido de forma inquestionável.

Já para a colaboradora da plataforma digital Curated by Girls a ModaLisboa abriu a caixa de Pandora ao decretar que a Moda não trata só de roupa. Trata-se de um meio de expressão e individualidade de cada um, de forma corajosa e sem reservas, é um catalisador de mudança, e a passerelle por excelência em termos de diversidade e inclusão. Sendo, portanto, a MLX um trendsetter no universo da Moda (Duveau, 2023).

Para Lígia Gonçalves, os componentes que dão corpo à essência da Lisboa Fashion Week e do trabalho da Associação no seu todo são clarividentes.

Não abdicando, no entanto, de centrar o seu discurso numa questão que demonstra que de facto a actuação da ModaLisboa, compreende a Moda como uma disciplina vasta e abrangente.

Uma actuação capaz de alcançar também tem uma positiva repercussão na preservação do património nacional, no incentivo a microempresas que trabalham actividades artesanais.

Como refere esta membro da organização, a tradição portuguesa é rica em actividades de saber fazer tradicionais, como seja — a cestaria, os linhos, as peles, as lãs, o crochet, o bordado, o tingimento natural, entre outros.

Actividades essas que, muitas vezes, vêm vida nova na criatividade dos nossos designers independentes.

Partindo de tal pressuposto, Gonçalves assegura que é um dos objectivos, da entidade a que pertence, contribuir para a visibilidade e reinvenção de tais tradições e técnicas. O mesmo é logrado por meio do estabelecer de uma convergência entre a sustentabilidade e a produção de materiais portugueses e feitos em Portugal.

Nesta mencionada essência, esteve, também, sempre o desejo. O desejo de dar a conhecer ao mundo o talento de quem, para além de habitar o nosso país, nasceu para se dedicar à Moda - com principal destaque, à partida, para os criadores.

A ModaLisboa é sinónimo para muitos da única possibilidade que têm de mostrar regularmente o seu trabalho.

Imagem de bastidores, ModaLisboa. Foto (atribuída a): João Bacelar e Rita Silva Martins (2007). Processo criativo da Marca Béhen. Fonte: Béhen © (2023).

Mas se, actualmente, os standards e a fasquia partem daquilo que podem ser consideradas muito boas condições para os designers. Sendo a procura incessante de as melhorar e incrementar cada vez mais, os alicerces para o contínuo desenvolvimento da Moda portuguesa, jamais abandonada.

Se recuarmos quase 33 anos no tempo, não se tratava da qualidade, porque não se pode pedir qualidade a algo que ainda não existe. Ambicionavam-se condições mínimas, que os desfiles pudessem ter iluminação adequada àquilo que é uma apresentação de Moda, que pisassem a passerelle modelos profissionais. No fundo, que fosse possível com custos baixos ter luz, som e  uma passerelle.

E assim, depois da edição piloto, no Jardim do Tabaco, durante as festas da cidade, o sucesso foi tal que o Vereador do Pelouro do Turismo, Victor Costa cumpriu o acordado com a dupla Abbondanza/ Matos Ribeiro, apoiando esta iniciativa que era, então, disruptiva.

Como relembra o artigo da revista Elle, celebrativo da primeira década de MLX, dito acordo cumpriu-se de forma irrepreensível. Até que em 2007, a Câmara Municipal de Lisboa toma a decisão de cessar o apoio até concedido. Decisão essa que daria início ao período “ModaLisboa| Estoril” A sua conclusão dar-se-ia aquando do primeiro mandato de António Costa como presidente da CML.

Nesse momento, os novos contratos de parceria entre a Associação MLX e a Câmara Municipal de Lisboa, possibilitariam o regresso da Fashion Week à casa mãe. Esta nova era seria marcada pela relação umbilical entre a ModaLisboa e o Pátio da Galé , local de Check Point , a edição do regresso à capital.

(Continua...)

Parte da dissertação de Mestrado em Design de Moda "O papel da Associação ModaLisboa no Sistema de Moda Português" de Vera Lúcia Mendes, Março de 2024.